A narrativa mais difundida sobre a origem da Falcoaria sustenta que a prática teria surgido como estratégia de subsistência em contextos de escassez. Essa explicação, embora intuitiva, contrasta com princípios básicos da biologia evolutiva. A ecologia comportamental mostra que organismos — humanos incluídos — tendem a adotar estratégias de forrageamento que maximizam a razão entre energia obtida e energia investida. O adestramento de uma ave de rapina, contudo, não se enquadra nesse modelo quando pensado como resposta imediata à fome. O processo demanda meses de dedicação, consumo de presas oferecidas à ave, ausência de garantias de sucesso e manutenção constante do vínculo. Em situações de necessidade, tais custos inviabilizariam a prática, já que métodos de caça direta — armadilhas, perseguição, pesca — oferecem retorno muito mais previsível e imediato.
Há ainda contranarrativas históricas que situam a falcoaria em contextos de prestígio e ritual, não de sobrevivência. Inscrições da Mesopotâmia datadas de mais de 4.000 anos, além de representações egípcias de aves de rapina no punho, sugerem que a prática esteve associada desde cedo a elites e simbolismos de poder. Esse dado arqueológico reforça a hipótese de que o vínculo inicial não respondia à fome, mas a valores culturais, rituais e de distinção social.
Do ponto de vista ecológico, a relação entre homem e falcão não configura domesticação plena — até tempos recentes não houve seleção artificial de linhagens. Trata-se de um mutualismo facultativo, em que a ave mantém sua autonomia ecológica e o humano apenas explora temporariamente suas habilidades predatórias. Relações desse tipo não oferecem garantias suficientes para sustentar populações em cenários de escassez crítica. É mais plausível que a Falcoaria tenha emergido em sociedades capazes de arcar com seus custos iniciais sem comprometer a sobrevivência.
Nesse ponto, a hipótese do luxo de Amotz Zahavi oferece um quadro interpretativo útil. Ela propõe que certos comportamentos e estruturas em animais não são adaptativos em termos de economia imediata, mas funcionam como sinais de abundância ou qualidade — a cauda do pavão é o exemplo clássico. Transportando essa lógica ao comportamento humano, práticas custosas e de baixo retorno imediato podem atuar como sinais sociais, marcadores de status ou meios de coesão cultural. A Falcoaria, sob essa ótica, teria surgido não da fome, mas da sobra: um investimento dispendioso, viável apenas em grupos que já possuíam excedente alimentar e energia disponível para sustentar atividades sem retorno direto.
Esse enquadramento se harmoniza com a teoria do forrageamento ótimo. Quando recursos são abundantes, organismos podem se dar ao luxo de explorar comportamentos alternativos, ainda que menos eficientes, porque o risco de perda é compensado pela segurança do excedente. A Falcoaria pode ser entendida como resultado desse cenário: uma experimentação cultural, derivada da observação atenta do comportamento predatório das aves, que só mais tarde foi consolidada como técnica de caça. Assim como ocorreu com o fogo ou com a domesticação inicial de cavalos, a utilidade prática provavelmente foi consequência secundária, não origem.
Sob a perspectiva comparativa, existem paralelos em outras culturas humanas que cooperaram com animais sem domesticação plena. A caça cooperativa entre humanos e golfinhos no sul do Brasil, ou relatos de parcerias entre povos antigos e lobos em estágios primitivos de domesticação, mostram que essa disposição para explorar alianças arriscadas com predadores faz parte de um espectro de experimentações cognitivas e sociais. A falcoaria, portanto, não é um caso isolado, mas uma das expressões mais refinadas desse impulso.
É nesse contexto que se pode recorrer ao conceito de exaptação — ainda que de forma analógica. Em biologia, a exaptação descreve traços inicialmente surgidos sem função adaptativa direta que depois são cooptados para novos usos (como penas, surgidas para isolamento térmico e só mais tarde utilizadas para voo). Aplicada aqui de forma metafórica, a falcoaria pode ser vista como um comportamento inicialmente sem valor adaptativo imediato, mas que, ao ser mantido e transmitido culturalmente, encontrou posterior função prática na caça. Essa interpretação ressalta a singularidade da cognição humana: capaz de investir energia em comportamentos custosos, simbólicos ou lúdicos, que só depois adquirem valor utilitário.
Portanto, a origem da Falcoaria não se explica pela necessidade imediata, mas pela plasticidade cultural que transforma excedente em inovação e curiosidade em técnica. Primeiro, como observação e cooperação experimental com um predador; depois, como técnica formalizada de caça; por fim, como símbolo de status em sociedades complexas. Essa trajetória não diminui seu valor adaptativo posterior — pelo contrário, mostra como a arte da falcoaria é fruto do mesmo motor que levou a humanidade a pintar cavernas, erguer rituais e, eventualmente, transformar símbolos em ferramentas.