Um dos artigos que mais gostei do resultado até hoje foi sobre a visão e percepção de mundo dos rapinantes. Se não me falha a memória se chama “Aquele cara tem olhos de águia e se move como um raio”, ou algo assim.
Infelizmente não teve boa visualização se comparado com outros bem piores. De qualquer forma, recomendo a leitura.
Esse assunto de perspectiva de visões de mundo entre as espécies — principalmente a percepção do Homo sapiens frente ao restante — sempre me fascinou. Então resolvi escrever algo mais direcionado. Espero agradar.
Bertrand Russell escreveu que, para uma minhoca, leões e panteras são inofensivos, mas galinhas e patos são mortais. É uma frase breve, quase anedótica, mas que carrega uma das ideias mais profundas da filosofia moderna: a percepção da realidade depende do ponto de vista de quem a experimenta. O que para um ser é força, para outro é ameaça. O que para um é paz, para outro é risco. Em suma, não há mundo “em si”, há apenas mundos vistos de dentro de cada olhar.
Na natureza, esse princípio é lei. Cada espécie habita um universo sensorial particular, filtrado pelos seus instintos e capacidades. O falcão não vê o mesmo céu que nós. Seus olhos, modelados pela seleção natural, distinguem nuances de movimento invisíveis ao homem; percebem o contraste entre a plumagem de uma presa e a sombra das nuvens a quilômetros de distância. Para ele, o vento não é brisa — é textura, orientação, aviso. O mundo que o falcão enxerga é feito de estímulos que o nosso cérebro é incapaz de registrar.
A Falcoaria, nesse sentido, é o exercício de tentar atravessar o abismo entre duas formas de perceber. O falcoeiro treina não apenas a ave, mas a si mesmo para ver como ela vê. Cada reação, cada batimento de asa, cada recuo de olhar é um código que traduz um estado interno. Quando o aprendiz entende que um simples movimento da luva pode parecer uma ameaça, ou que um passo mal cronometrado rompe a confiança construída ao longo de semanas, ele começa a compreender o princípio da relatividade da percepção.
Há falcoeiros que descrevem certas aves como “rebeldes”, “teimosas” ou “malvadas”. Outros, diante das mesmas atitudes, falam em “defensivas”, “desconfiadas”, “cautelosas”. A diferença não está na ave, mas no observador. O comportamento é o mesmo; o significado, não. Russell já alertava: o erro está em acreditar que a nossa percepção é o centro da verdade. A Falcoaria ensina a humildade de perceber que o olhar humano é apenas um entre muitos.
Nas relações entre predador e presa, a relatividade da percepção se revela de forma brutal. Para o pombo, o falcão é o fim; para o falcão, o pombo é apenas o meio. Ambos são coerentes dentro de seus mundos. O predador não é cruel — apenas cumpre sua natureza. A vítima não é fraca — apenas ocupa um papel diferente no mesmo equilíbrio. A vida selvagem é feita de perspectivas inconciliáveis que, paradoxalmente, sustentam o mesmo sistema.
Entender isso é libertador. Quando o falcoeiro aprende a enxergar a realidade a partir da ave, ele descobre que a disciplina do treino não é dominação, mas diálogo. Que o controle é uma ilusão: não se “comanda” uma ave de rapina, apenas se negocia com ela em termos que façam sentido ao seu mundo sensorial. Uma relação bem-sucedida depende menos da força e mais da empatia biológica — a rara habilidade de compreender outro ser segundo as leis que o regem.
Russell dizia que compreender é o primeiro passo da tolerância. No campo, isso significa aceitar que o medo, a hesitação ou a fuga da ave não são defeitos, mas respostas coerentes com seu universo de significados. O falcoeiro sábio é aquele que, ao ver a ave recusar o punho, não se irrita — pergunta-se o que ela viu que ele não viu.
Talvez a filosofia e a Falcoaria se encontrem justamente aí: na consciência de que toda percepção é parcial, e que compreender o outro exige renunciar à ilusão de possuir a verdade. Assim como o falcão, o homem também só enxerga uma fração do mundo. E talvez a verdadeira arte — tanto da filosofia quanto da Falcoaria — seja aprender a olhar o invisível: aquilo que existe entre o que vemos e o que o outro sente.